O lado B do nomadismo digital na Tailândia

Matheus de Souza

Após uma hora espremidos num avião de uma dessas companhias low cost, mais uma na carroceria de uma caminhonete, estilo boias-frias, e outras três num ferry boat abarrotado de turistas, em sua maioria russos e americanos, minha esposa e eu desembarcamos no píer de Ton Sai Bay, pequena ilha que pertence ao arquipélago de Phi Phi (pronuncia-se “pi pi”), na Tailândia, sudeste asiático.

Ton Sai Bay, Phi Phi, Tailândia. Foto: Laís Schulz.

Pouco mais de uma década antes, em 26 de dezembro de 2004, uma série de ondas gigantes varreu a região. Estima-se que mais de 200 mil pessoas tenham perdido suas vidas nos quatorze países atingidos pelos tsunamis devastadores que sacudiram o Oceano Índico. Na Tailândia, 11 mil morreram — a maioria em Phi Phi. Resorts de luxo, hotéis e restaurantes foram reduzidos a nada. Quem desembarca em Ton Sai Bay hoje em dia, no entanto, não consegue sequer imaginar o terror ocorrido ali anos antes. O clima é de festa e curtição.

Descemos do ferry boat num dia ensolarado da primeira semana de novembro de 2017. Na faixa de areia os proprietários dos longtail boats, os tradicionais barcos de madeira com enfeites na proa, esperam sedentos pelos turistas.

— Boat! Boat! Boat! Taxi boat! — são as primeiras palavras que você ouve quando deixa o píer de Ton Sai Bay.

Entramos num bar qualquer na beira da praia. Precisávamos de Wi-Fi para utilizar o Google Maps. Nossa acomodação, segundo o aplicativo, ficava a dez minutos dali. Pedimos uma cerveja cada, a tradicional Chang, para aliviarmos o calor.

Aproveito a conexão com a internet para enviar fotos da viagem para minha mãe pelo WhatsApp. Na rua, transeuntes cruzam a orla sorridentes e cheios de mochilas. Enquanto uns chegam, outros vão. Os do segundo grupo você identifica facilmente através da vermelhidão em suas tezes e das vestes de bicho-grilo com estampas de elefantes.

O garçom sorri ao descobrir que somos brasileiros. Fala do Neymar, diz que quando criança adorava ver o Ronaldinho jogar. Para um brasileiro no exterior, o futebol, goste você ou não, é uma ótima forma de quebrar o gelo.

Pagamos a conta incrivelmente barata e seguimos pela rota do aplicativo. Cruzamos toda extensão da praia. Se antes grupos de turistas nos faziam companhia pelas ruelas estreitas, agora éramos apenas nós dois. Eles já haviam encontrado seus destinos em luxuosos hotéis na beira-mar.

Subimos um morro, descemos outro, recusamos taxi boats e, enfim, encontramos a acomodação. Um tailandês cabeludo vestindo uma camisa de algum time de futebol local e sentado em posição de lótus nos atende. Pergunto seu nome.

— B.

— B.?

— B.

Ele escreve “B.” num papel e aponta sorridente.

— B.!

Apresentações feitas, minha esposa preenche uma ficha colada num caderno velho que deve ser da Tilibra tailandesa e B., o tailandês cabeludo, nos companha até nossa acomodação.

Antes de entrar nos detalhes do nosso pequeno apartamento tailandês, faz-se necessário salientar que, devido ao nosso orçamento precário, optamos pelo mais barato. Porém, e esse porém é importante, as avaliações num desses aplicativos de hospedagens eram muito boas. Principalmente no que diz respeito à internet, fator essencial para nômades digitais como nós. Dito isso, convido o leitor a usar sua imaginação para tentar sentir o que sentimos.

B. nos mostra o quarto. Dizem que a primeira impressão é a que fica. A nossa foi a de uma porta de madeira nada segura com dois vitrais, sendo um deles quebrado e trocado por uma tábua pregada na transversal, anunciando o que estava por vir.

O quarto? Três camas de solteiro perfiladas — uma em estado mais deplorável que a outra. A parede tinha os tijolos aparentes, sem reboco, mas não de um jeito hipster. A vibe era favela mesmo. Não lembrava em nada, ou quase nada, o que vimos no anúncio do tal aplicativo de hospedagens.

O banheiro, pequeno e sujo, é um complexo engenhoso de teias de aranha que parecem estar ali há uns bons anos. Penso que é o fim da linha. Estamos numa ilha tropical e logo imagino que as aranhas, certamente venenosas, nos matarão durante a noite.

A noite chega e me deito sobre o lençol puído de uma das camas de solteiro. Faz 35 graus e tudo que temos é um ventilador com uma das pás quebradas. O quadro é desesperador. E se quem quebrou um dos vidros da porta aparecer e tentar nos roubar? E se uma aranha venenosa nos picar? E se a cama estiver infestada de bed bugs? E se formos sequestrados como num daqueles filmes cults onde turistas acordam numa banheira cheia de gelo e sem algum órgão?

O sol ainda não tinha dado as caras quando um galo começa a cantar na cabana da frente como se não houvesse amanhã. Perco o sono e resolvo trabalhar. Naquele dia eu teria que entregar o trabalho mais importante da minha vida até então — um texto para o Google. O que dentro desse cenário era uma ironia absurda. Imaginava os funcionários da gigante do Vale do Silício em escritórios climatizados sentados em seus puffs coloridos tomando seus cafés dessas máquinas chiques enquanto eu parecia uma mistura de Hunter S. Thompson em Porto Rico e Ernest Hemingway em Cuba; trabalhando numa escrivaninha manca, sentado numa dessas cadeiras típicas em escolas públicas brasileiras dos anos 1990, vestindo uma camisa de botões aberta até metade da barriga, bermuda, chinelo e suando por todas as extremidades.

Termino o artigo enquanto o galo ainda canta lá fora. O sol nasce. O calor aumenta. Abro mais um botão da camisa, mas o calor continua insuportável. Abro a porta do vidro quebrado e me escoro no corrimão da sacada improvisada. Enquanto isso, o vizinho da frente, o dono do galo, enrola um baseado pacientemente. Ao seu lado vejo um segundo já pronto para o consumo. Uma turista loira e de bochechas rosadas sai da cabana ao lado e o tailandês dos baseados lhe oferece um. Ela agradece, mas rejeita.

Quando retorno para o interior do apartamento minha esposa já está acordada. Fazemos algumas contas e decidimos deixar a acomodação — ainda tínhamos quatro diárias. O plano era encontrar uma outra na beira da praia e pechinchar em caso de quarto vago.

Nosso anfitrião, B., não estava na recepção. Não havia ninguém na recepção. O cara dos baseados passa por nós e acena com a cabeça. Aceno de volta. São quase 9h da manhã quando o filho da puta do galo volta a cantar.

— Pra mim deu. Vamos embora desse lugar. — digo para minha companheira.

Como não encontramos B., continuamos com a chave do local. Em último caso, voltaríamos para a acomodação. Se conseguíssemos algo melhor, apareceríamos ali no dia do checkout como se nada tivesse acontecido, já que o aplicativo não previa a devolução do nosso dinheiro.

Subimos um morro, descemos outro, e resolvemos entrar no hotel onde a maior parte dos turistas entrou no dia anterior. Para nossa surpresa, os preços não eram exorbitantes. Ficamos com um dos quartos.

Um simpático recepcionista nos acompanha até nossa nova acomodação. Cama de casal daquelas bem largas, ar condicionado, um pequeno estoque de Chang no frigobar, uma escrivaninha de verdade, uma cadeira de verdade, entre outros pequenos luxos que incluem roupões e chocolates.

Trabalhando no dia seguinte em minha nova escrivaninha, ar condicionado ligado, vestido com um roupão branco e saboreando frutas frescas, recebo por e-mail a aprovação do artigo escrito pro Google em meio ao caos da manhã anterior. Aparentemente, eu realmente posso trabalhar de qualquer lugar do mundo.


De longe avisto B. em posição de lótus. Ele abre um sorriso quando me vê. Lhe entrego as chaves.

— Gostaram daqui? — pergunta B., num inglês arrastado.

— Adoramos, B. Adoramos.

Nota do editor:
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Este texto também pode ser lido aqui e aqui.

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